JUSTIÇA RESTAURATIVA E ENCARCERAMENTO FEMININO POR TRÁFICO DE DROGAS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Autores

  • Eliane Maria Arcanjo da Silva VENI CREATOR CHRISTIAN UNIVERSITY
  • Suenya Talita de Almeida VENI CREATOR CHRISTIAN UNIVERSITY

Palavras-chave:

Sistema penal. Mulheres presas. Violência de gênero. Tráfico de drogas. Abordagem restaurativa.

Resumo

A crescente criminalidade ligada ao tráfico de drogas no Brasil tem intensificado o recrutamento de mulheres para atividades ilícitas, especialmente como transportadoras de drogas. Essa prática, que explora a vulnerabilidade feminina em um contexto dominado por homens, evidencia a necessidade de uma análise mais aprofundada sobre a desigualdade de gênero no sistema penal e a lacuna existente em pesquisas que cruzam gênero, crime e justiça. (WICHINHESKI, 2023).

A partir da implementação da política proibicionista de combate às drogas, na década de 1980, testemunha-se um crescimento exponencial da repressão ao tráfico e, como consequência direta, um aumento alarmante da população carcerária em escala mundial. No Brasil, o crescente número de mulheres encarceradas, em especial por crimes relacionados ao tráfico de drogas, é reflexo de uma triste realidade: muitas vezes, são elas as únicas responsáveis pelo sustento familiar, em um contexto de vulnerabilidade social. Sem acesso à educação formal - 45% das presas não concluíram o ensino fundamental (INFOPEN MULHERES, 2018) - essas mulheres se veem sem oportunidades no mercado de trabalho formal e, em alguns casos, suscetíveis a atividades ilícitas para sobreviver.

Embora as mulheres representem uma parcela significativa da população carcerária, com um alto índice de envolvimento com o tráfico de drogas, elas atuam em escalões inferiores das organizações criminosas. E geralmente desempenham papéis secundários, como transportadoras ou pequenas comerciantes, sendo muitas vezes usuárias de drogas. Essas mulheres, que se encontram em situação de vulnerabilidade devido a históricos de violência, maternidade, questões financeiras e uso de substâncias, possuem demandas e necessidades específicas, conforme evidenciado pelos dados do INFOPEN (2018).

Cortina (2015) afirma que os dados da sua pesquisa mostram que a maioria das mulheres presas por tráfico de drogas citam a necessidade de sustentar seus filhos e a falta de oportunidades32 de trabalho, como os principais motivos para se envolverem com o crime. Isso confirma a ideia de que, para muitas delas, o tráfico é visto como uma forma de garantir renda. Essa situação é um reflexo da feminização da pobreza, que torna as mulheres mais vulneráveis à exclusão social e as leva a tomar decisões extremas para sobreviver.

O sistema prisional, concebido por e para homens, não considera as necessidades específicas das mulheres, perpetuando a marginalização feminina e reforçando estereótipos de gênero. A ideia de que mulheres não devem cometer crimes e devem se limitar aos papéis de cuidadoras é profundamente arraigada nesse sistema (COSTA, 2019).

Ao se aprofundar na análise da situação das mulheres encarceradas no Brasil, percebe-se que elas enfrentam uma série de desafios. As prisões, projetadas para homens, não levam em conta as particularidades do universo feminino, o que as torna ainda mais vulneráveis. A falta de recursos básicos e o isolamento emocional intensificam o sofrimento dessas mulheres, que são invisibilizadas pela sociedade e tratadas de forma desumana. Essa realidade exige uma urgente reforma do sistema prisional, com foco na dignidade humana e na Justiça Restaurativa (JR) (WICHINHESKI, 2023).

Segundo Cortina (2015), o tráfico de drogas é organizado de forma hierárquica, com homens no comando. As mulheres, além de serem submetidas a essa desigualdade dentro do crime, sofrem ainda mais quando presas, pois os presídios, projetados para homens, as marginalizam.

A criminologia crítica e feminista demonstra que o sistema penal, ao invés de combater crimes, criminaliza determinadas pessoas. Pessoas pobres e negras, por exemplo, são mais suscetíveis à prisão por tráfico de drogas, mesmo sem provas concretas. A falta de critérios objetivos e a interpretação subjetiva de elementos como local da abordagem e aparência física contribuem para essa seletividade penal (GERMANO; MONTEIRO e LIBERATO, 2018).

Nos termos de Santoro (2018), a atual realidade do sistema prisional brasileiro, marcado pelo descaso com os direitos humanos, se torna ainda mais cruel e desumano quando se trata de mulheres encarceradas. As violações a que são submetidas dentro das prisões se configuram como um retrato aterrador da invisibilidade e da marginalização que assolam essa parcela da população.

Constata-se que o aprisionamento em massa tem se mostrado uma política eficiente para seus fins, a eficácia invertida [1]ocasionando a morte social dos aprisionados, dificuldade no processo de ressocialização com seus métodos e estruturas privando os prisioneiros de suas garantias e direitos constitucionais, enquanto produz na sociedade a falsa sensação de justiça e segurança.

No entanto, essa aparente eficácia se revela como um contrassenso, pois os dados mais recentes do RELIPEN indicam que o Brasil continua com uma das maiores populações carcerárias do mundo, demonstrando que o encarceramento em massa não é uma solução duradoura para o problema da criminalidade.

De acordo com o último Relatório de Informações Penais (RELIPEN), publicado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e referente ao primeiro semestre de 2024, o Brasil conta com uma população carcerária de 663.387 detentos, composta por 634.617 homens e 28.770 mulheres.

Diante deste cenário, questiona-se: Como a justiça restaurativa pode ser uma alternativa para abordar as causas subjacentes à criminalização das mulheres e promover a reinserção social, considerando as especificidades de gênero e as raízes sociais e econômicas desse problema?

A análise deste estudo está delimitada aos crimes de tráfico de drogas, em razão da incidência desse tipo penal no encarceramento de mulheres que, segundo levantamento do Infopen Mulheres, era de 62% dos crimes pelos quais as mulheres estavam presas. Isso demonstra a relevância do tráfico de drogas como principal causa do encarceramento feminino (INFOPEN MULHERES, 2018).

A proposta de pesquisa observa três etapas para seu desenvolvimento: (i) levantamento bibliográfico pertinente, através de buscas na literatura científica, jurídica e doutrinária utilizando critérios de inclusão e exclusão dos textos e referências cruzadas; (ii) análise dos dados por meio da análise de conteúdo por categoria; (iii) apresentação dos resultados utilizando texto.

Considerando essa realidade, o estudo "Pilotando a Justiça Restaurativa" do CNJ, de 2018, aponta para uma expansão significativa de práticas restaurativas no Brasil. Atualmente, a maioria das unidades federativas possui programas de Justiça Restaurativa, seja em fase inicial ou já consolidados. Essas iniciativas abrangem várias áreas, desde a infância e juventude até a execução penal, passando por juizados especializados em violência doméstica e torcida organizada. Além disso, a Justiça Restaurativa tem se mostrado promissora em espaços como escolas e guardas municipais, demonstrando seu potencial para transformar a cultura de resolução de conflitos no país (CNJ, 2018).

No entanto, embora o estudo do CNJ demonstre um avanço significativo da Justiça Restaurativa no Brasil, é evidente a necessidade de novas diretrizes para atender às particularidades de grupos vulneráveis, como mulheres envolvidas com o tráfico de drogas. Ao identificar essa lacuna, a pesquisa reforça a urgência de políticas públicas, propondo uma reflexão sobre a possibilidade de implementar programas restaurativos nesse contexto.

De acordo com Zehr (2008), a Justiça Restaurativa propõe uma nova maneira de enxergar os conflitos, uma mudança de paradigma. Ao invés de se concentrar apenas na violação da lei, como faz a justiça tradicional, a Justiça Restaurativa direciona seu olhar para as pessoas diretamente envolvidas no conflito e para as consequências que estas causaram. É como se a Justiça Restaurativa convidasse a trocar as lentes com as quais o crime é analisado, adotando uma perspectiva mais humanizada e focada nas relações entre as pessoas.

Segundo análises de Melo et al. (2023), a Justiça Restaurativa emerge como uma abordagem promissora para lidar com conflitos relacionados a questões de gênero, tanto em âmbito individual quanto coletivo. Ao fortalecer o poder pessoal da vítima e proporcionar um espaço seguro para diálogo, essa prática permite que os envolvidos transformem conflitos, diferenças e ofensas em oportunidades de crescimento e fortalecimento de vínculos. Além disso, a Justiça Restaurativa contribui indiretamente para a prevenção da reincidência criminal.

O Brasil, com uma das maiores taxas de encarceramento do mundo, evidencia a necessidade de planos estatais mais humanizados e efetivos no trato da questão penal. Nesse contexto, a JR se apresenta como uma abordagem promissora, que busca alternativas ao encarceramento tradicional, priorizando a reparação do dano e a reintegração social dos indivíduos.

Mais do que punir, a Lei de Execução Penal - LEP (Lei nº 7.210/1984) visa a reintegração social do condenado, com vista à efetivação das sentenças ou decisões, criminais, proporcionando condições harmônicas para integração social do condenado e do internado. O art. 1º da referida lei determina que a pena privativa de liberdade deve criar condições para que o indivíduo possa se reinserir na sociedade de forma plena (BRASIL, 1984).

Levantamento realizado pela Central de Regulação de Vagas, ligada ao CNJ, constatou que no período de 2011 a 2021 havia, em média, cerca de 66% mais presos do que vagas existentes e que existe uma tendência de aumento do déficit de vagas, em face do aumento de ordens de prisão. Ademais, ainda que se avente a criação de novas vagas, esta solução está longe de ser a ideal, uma vez que se mostra onerosa (CNJ, 2022).

Ainda, de acordo com o CNJ, o custo mensal médio de um detento é R$ 1.800,00 (mil e oitocentos reais). Levando em conta que no ano de 2021 havia 680 mil pessoas privadas de liberdade, sendo o custo anual da manutenção do sistema prisional da ordem de R$ 14,7 bilhões ao ano (excluindo o custo para criação de novas vagas). (CNJ, 2022).

À luz dessa problemática, ao oferecer alternativas ao encarceramento, a Justiça Restaurativa pode contribuir para a redução da superlotação dos presídios e para a diminuição dos custos relacionados à manutenção do sistema penal.

A ressocialização, apesar de figurar nas agendas de segurança pública, ainda não se traduz em ações governamentais eficazes, especialmente para reinserir o preso na sociedade. Soma-se a isso a disparidade no atendimento às mulheres encarceradas, que, mesmo com um número crescente, recebem tratamento similar ao dos homens, o que dificulta ainda mais sua ressocialização (SOUZA; COSTA e LOPES, 2019).

De acordo com os Relatórios de Informações Penais, publicado em dezembro de 2023, pela Secretaria Nacional de Políticas Penais, ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, em Pernambuco[2], a população carcerária feminina era de 835 detentas, com condenação, já as detentas em regime provisório somava 492 presas no Estado (BRASIL, 2023).

Diante do cenário alarmante do encarceramento feminino no Brasil, com destaque para a elevada taxa de mulheres presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas, este estudo se torna ainda mais relevante. Ao analisar a efetividade da Justiça Restaurativa como alternativa para essas mulheres, a pesquisa contribui para o campo do Direito Penal e das Ciências Criminais, ao aprofundar o debate sobre a JR e suas aplicações práticas. Ao desconstruir os estereótipos sobre as mulheres envolvidas com o tráfico e questionar a construção social do "risco social" associado a elas, busca-se contribuir para a superação de um modelo penal excludente e a construção de um sistema de justiça criminal mais equânime e restaurativo.

 

[1]A eficácia invertida significa, então, que a função latente e real do sistema penal não é combater (reduzir e eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao invés, construí-la seletivamente e estigmatizantemente, e neste processo reproduzir material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de classe, de gênero, de raça)” (ANDRADE, 2014, p. 136).

[2]A escolha por esta unidade federativa justifica-se pela sua alta taxa de encarceramento feminino e pela necessidade de aprofundar a compreensão do fenômeno em um contexto específico.

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Publicado

2025-06-12

Como Citar

Silva, E. M. A. da, & Almeida, S. T. de. (2025). JUSTIÇA RESTAURATIVA E ENCARCERAMENTO FEMININO POR TRÁFICO DE DROGAS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES. Revista Ibero-Americana De Humanidades, Ciências E Educação, 21–272. Recuperado de https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/19705

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