PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS FRENTE AO DISCURSO DE ÓDIO NAS REDES SOCIAIS E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Palavras-chave:
Liberdade de expressão. Discurso de ódio. Redes sociais. Direitos fundamentais. Regulação de plataformas digitais.Resumo
O advento e a popularização das redes sociais e plataformas digitais nas últimas décadas transformaram profundamente as dinâmicas comunicacionais, políticas e sociais em escala global. O que inicialmente se apresentava como um promissor espaço de democratização do acesso à informação, de ampliação das possibilidades de expressão e de fortalecimento da participação cidadã no debate público, gradualmente revelou também sua face sombria: um ambiente propício à disseminação acelerada e massiva de discursos de ódio, desinformação e conteúdo que atentam contra a dignidade humana e os fundamentos do Estado Democrático de Direito. Esse fenômeno, longe de ser uma questão meramente tecnológica, configura-se como um complexo desafio jurídico, político e social que demanda respostas multidimensionais e interdisciplinares.
No contexto brasileiro, essa problemática adquire contornos ainda mais sensíveis e urgentes. Um país marcado por profundas desigualdades estruturais, por um histórico de violência e discriminação contra grupos minoritários e vulnerabilizados, e por uma democracia ainda em processo de consolidação após um longo período ditatorial, enfrenta o desafio de equilibrar a proteção robusta à liberdade de expressão – pilar fundamental de qualquer regime democrático e garantia constitucional expressa – com a necessidade igualmente imperiosa de coibir manifestações que promovam o ódio, a intolerância e a exclusão social. Como observa Sarlet (2021, p. 221), "a liberdade de expressão, embora essencial à democracia, não pode servir de escudo para práticas que negam a própria dignidade humana e o pluralismo que caracteriza uma sociedade aberta".
A Constituição Federal de 1988, conhecida como "Constituição Cidadã", estabeleceu um compromisso inequívoco com a proteção da dignidade da pessoa humana, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e com a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminações de qualquer natureza (art. 1º, III e art. 3º, I e IV). Ao mesmo tempo, consagrou a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX) e a liberdade de informação jornalística (art. 220), como direitos fundamentais invioláveis. Esse aparente paradoxo – a necessidade de proteger simultaneamente a liberdade de expressão e a dignidade humana – constitui o cerne do debate jurídico contemporâneo sobre os limites do discurso no espaço público, especialmente no ambiente digital.
As redes sociais, com sua arquitetura algorítmica orientada primordialmente à maximização do engajamento e do tempo de permanência dos usuários, frequentemente amplificam conteúdos extremos, polarizadores e emocionalmente carregados, criando o que Sunstein (2017) denomina "câmaras de eco" e Pariser (2012) chama de "filtros-bolha" – ambientes digitais onde os indivíduos são expostos predominantemente a informações e opiniões que reforçam suas crenças preexistentes, com pouco ou nenhum contato com perspectivas divergentes. Esse fenômeno, aliado à velocidade de disseminação de conteúdos nas plataformas digitais e à possibilidade de anonimato ou pseudonimato, cria condições particularmente favoráveis à proliferação do discurso de ódio online.
Segundo dados da pesquisa TIC Domicílios 2024, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.BR, 2024), 97% dos brasileiros com mais de 10 anos são usuários de internet, e destes, 81% utilizam redes sociais regularmente. Esse elevado grau de penetração das plataformas digitais na vida cotidiana dos cidadãos brasileiros amplifica tanto o potencial democrático quanto os riscos associados a esses espaços. Um levantamento realizado pela SaferNet Brasil (2023) registrou um aumento de 41% nas denúncias de discurso de ódio nas redes sociais em comparação ao ano anterior, com destaque para manifestações racistas (na forma de discriminação baseada na raça, a partir do falso entendimento de que haveria raças humanas superiores a outras) (DIAS, [2025]), xenofóbicas (hostilidade e ódio manifestado contra pessoas por elas serem estrangeiras ou por serem enxergadas como estrangeiras) (SILVA, [2024]), homofóbicas (atitudes e sentimentos negativos, como aversão, repugnância, medo e agressão, contra indivíduos que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis) (MENDES, [2025]) e misóginas (ódio ou aversão às mulheres, manifestando-se através de atitudes e comportamentos que as desvalorizam, discriminam e violentam) (CAMPOS, [2025]).
A relevância do tema se evidencia ainda mais quando observamos os impactos concretos que o discurso de ódio online produz na vida de indivíduos e grupos historicamente marginalizados. Estudos recentes, como o de Recuero e Soares (2021), demonstram correlações significativas entre picos de discurso de ódio nas redes sociais e o aumento de casos de violência física contra minorias. Além disso, o fenômeno tem implicações diretas para a qualidade do debate democrático e para a própria estabilidade institucional, como ficou evidente em episódios recentes da história brasileira, nos quais narrativas de ódio e desinformação contribuíram para a polarização extrema e para tentativas de deslegitimação de instituições democráticas (RECUERO; SOARES, 2021).
No plano jurídico, o Brasil enfrenta o desafio de atualizar seu arcabouço normativo para responder adequadamente a essa nova realidade. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que foi criado em um contexto de crescente popularização da internet no Brasil, com a necessidade de regulamentar minimamente o uso da rede e garantir direitos aos usuários, apesar de ter surgido a partir de debates e consultas públicas que envolveram a sociedade civil, o governo e o setor privado, embora tenha representado um avanço significativo ao estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país, tem se mostrado insuficiente diante da complexidade e da dinamicidade dos problemas relacionados ao discurso de ódio online. Em particular, o regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet previsto em seu artigo 19 – que condiciona a responsabilização à desobediência de ordem judicial específica – tem sido objeto de intenso debate acadêmico, legislativo e jurisprudencial.
Paralelamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido chamado a se manifestar sobre casos emblemáticos envolvendo o conflito entre liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, como no Habeas Corpus (HC) 82.424/RS (Caso Ellwanger), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130/DF (Lei de Imprensa), na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26/DF (criminalização da LGBTfobia) e no Inquérito 4.781/DF (Inquérito das Fake News). Essas decisões, embora fundamentais para a construção de parâmetros interpretativos, ainda não consolidaram um entendimento uniforme e abrangente sobre os limites da liberdade de expressão no ambiente digital e sobre a caracterização jurídica do discurso de ódio.
No cenário internacional, diversos países e blocos regionais têm adotado abordagens regulatórias mais assertivas em relação às plataformas digitais e ao discurso de ódio online. A União Europeia, com o Digital Services Act (DSA) e o Code of Conduct on Countering Illegal Hate Speech Online, e a Alemanha, com o Netzwerkdurchsetzungsgesetz (NetzDG), são exemplos de iniciativas que buscam estabelecer obrigações mais claras para as plataformas em termos de moderação de conteúdo e transparência algorítmica. Essas experiências internacionais oferecem importantes referências para o debate brasileiro, embora seja fundamental considerar as especificidades do contexto nacional na formulação de respostas regulatórias.
Diante desse cenário complexo e desafiador, esta dissertação se propõe a investigar o seguinte problema de pesquisa: Como o direito brasileiro pode equilibrar a liberdade de expressão com o combate ao discurso de ódio nas redes sociais, respeitando os princípios constitucionais e os compromissos internacionais de proteção aos direitos humanos?
A hipótese que orienta esta investigação é a de que a proteção aos direitos humanos no Brasil demanda a construção de parâmetros jurídicos mais claros para a limitação da liberdade de expressão quando esta se converte em discurso de ódio, especialmente nas redes sociais, exigindo não só normas mais específicas, mas também maior responsabilização das plataformas digitais. Parte-se do pressuposto de que é possível – e necessário – desenvolver um modelo normativo, institucional e jurisprudencial que concilie a ampla liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal de 1988 com a vedação a manifestações que, sob o manto dessa liberdade, promovam a exclusão, a discriminação e a negação da dignidade humana.
Quanto à estrutura, a dissertação está organizada em Introdução, Referencial Teórico, Metodologia, Resultados e Discussões e Considerações Finais.
Destaco o conteúdo do Referencial Teórico, que aborda o conceito de direitos humanos, princípio da dignidade da pessoa humana e direito à não discriminação, a evolução histórica e filosófica da liberdade de expressão, sua configuração no sistema constitucional brasileiro, as especificidades da liberdade de informação, comunicação e imprensa, e os limites constitucionais e cláusulas de vedação à liberdade de expressão. Traz à lume também o estudo do discurso de ódio, explorando seu conceito jurídico e filosófico, as diferenças entre discurso ofensivo, discurso de ódio e discurso discriminatório, a dignidade da pessoa humana como limite à manifestação do pensamento, a tipificação penal brasileira, e os parâmetros dos sistemas interamericano e europeu de direitos humanos. Segue com a análise do papel das redes sociais como arenas públicas contemporâneas, os desafios relacionados aos algoritmos, à viralização e à responsabilidade das plataformas, o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a liberdade de expressão, os dilemas jurídicos da moderação de conteúdo, e casos emblemáticos no Brasil. Por fim, o Referencial Teórico discute a proteção de grupos vulneráveis como dever do Estado, o discurso de ódio como forma de violência simbólica e estrutural, a jurisprudência do STF e da Corte Interamericana, propostas para um modelo normativo e jurisprudencial equilibrado, e o papel da educação digital, da regulação democrática e da cultura de paz no enfrentamento ao discurso de ódio.
Ao longo deste percurso investigativo, busca-se contribuir para o avanço do debate jurídico sobre um tema de crescente relevância social, política e constitucional, oferecendo subsídios teóricos e práticos para a construção de um modelo regulatório que proteja efetivamente tanto a liberdade de expressão quanto a dignidade humana no ambiente digital.
1.1 OBJETIVOS1.1.1 Objetivo Geral
Analisar criticamente os fundamentos jurídicos, os parâmetros normativos e os desafios práticos relacionados à regulação do discurso de ódio nas plataformas digitais no Brasil, considerando as tensões entre a liberdade de expressão e a dignidade humana.
1.1.2 Objetivos Específicos
- a) Examinar a evolução histórica e filosófica do conceito de liberdade de expressão e sua configuração no sistema constitucional brasileiro;
- b) Analisar o conceito jurídico de discurso de ódio, suas características e suas distinções em relação a outras formas de manifestação controversa;
- c) Investigar o papel das redes sociais como arenas públicas contemporâneas e os desafios específicos que suas características tecnológicas e econômicas impõem à regulação do discurso;
- d) Avaliar criticamente o atual marco normativo brasileiro e as propostas legislativas em discussão sobre o tema;
- e) Analisar a jurisprudência do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre liberdade de expressão e discurso de ódio;
- f) Propor diretrizes para um modelo normativo e jurisprudencial equilibrado, que concilie a proteção à liberdade de expressão com o combate efetivo ao discurso de ódio.
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