A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM RELAÇÕES LGBTQIAPN+: LIMITES E POSSIBILIDADES NO CONTEXTO DO RECIFE

Autores

  • Robéria Vasconcelos Nunes VENI CREATOR CHRISTIAN UNIVERSITY
  • Henrique Rodrigues Lelis VENI CREATOR CHRISTIAN UNIVERSITY

Palavras-chave:

Lei Maria da Penha. Violência Doméstica. População LGBTQIAPN+. Interseccionalidade. Políticas Públicas.

Resumo

A violência doméstica é um fenômeno social complexo e multifacetado que transcende barreiras de classe, raça, gênero e orientação sexual, refletindo desigualdades estruturais profundamente enraizadas na sociedade brasileira. Constitui uma manifestação direta de relações de poder desiguais, que perpetuam a subordinação de determinados grupos sociais e reforçam padrões de controle e opressão (SAFFIOTI, 2004). No Brasil, a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) foi um marco histórico no enfrentamento à violência de gênero, ao instituir mecanismos jurídicos robustos para a proteção das vítimas e a responsabilização dos agressores. Reconhecida pela ONU como uma das legislações mais avançadas no combate à violência contra a mulher, a lei consolidou medidas protetivas e ações preventivas para coibir essa forma de violência (PIOVESAN, 2014).

Contudo, apesar dos avanços trazidos por essa lei, sua concepção e implementação têm se concentrado majoritariamente em mulheres cisgênero em contextos heteronormativos. Isso exclui, em grande medida, outros grupos vulneráveis, como a população LGBTQIAP+, cujas experiências de violência doméstica frequentemente se manifestam de formas específicas e, muitas vezes, invisíveis. Segundo Moura et al. (2023), as lacunas na aplicação da lei em relações LGBTQIA+ refletem a LGBTQIAPN+fobia estrutural, que está associada a violências e discriminações frequentemente iniciadas no ambiente doméstico e intrafamiliar.

Essas violências são agravadas pela ausência de uma abordagem jurídica que reconheça as especificidades das dinâmicas de violência em relações homoafetivas. Conforme Torres Júnior (2019), a proteção legal para vítimas de violência doméstica LGBTQIAP+ ainda enfrenta desafios significativos, uma vez que o sistema jurídico é amplamente construído a partir de modelos heteronormativos. Essa limitação pode resultar na exclusão ou na aplicação inadequada de leis existentes, o que reforça a invisibilidade das demandas de pessoas LGBTQIAPN+ em situações de violência doméstica.

O conceito de LGBTQIAPN+ engloba uma diversidade de identidades e orientações sexuais e de gênero que fogem à norma cisgênero e heterossexual, abrangendo lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexo, assexual, pansexual e outras expressões representadas pelo símbolo "+". Além de descrever aspectos identitários, o termo também possui um forte caráter político e social, servindo como bandeira de luta contra a discriminação estrutural que historicamente marginalizou essas populações (COLL-PLANAS, 2010). A população LGBTQIAPN+ enfrenta desafios singulares no contexto da violência doméstica, que vão desde a invisibilidade nos dados oficiais até a discriminação institucional em serviços de proteção e no sistema de justiça. Essa exclusão reforça barreiras que dificultam o acesso à justiça e a implementação de políticas públicas inclusivas (Cerqueira et al., 2019).

As relações LGBTQIAP+ apresentam dinâmicas de poder e controle que podem diferir substancialmente das relações heterossexuais. Essas dinâmicas envolvem manifestações de violência física, psicológica, sexual e patrimonial, demandando uma abordagem específica e sensível às necessidades desse grupo (CALTON; CATTANEO; GEBHARD, 2016). Contudo, como apontam Figueiredo et al. (2017), a jurisprudência e os serviços de proteção frequentemente desconsideram ou minimizam essas especificidades, resultando em subnotificação de casos e na ausência de ações efetivas. Muitas vítimas LGBTQIAP+ enfrentam dificuldades adicionais, como o receio de revelar sua orientação sexual ou identidade de gênero, devido ao medo de estigmatização social e familiar.

Em Recife, essas questões se agravam diante da ausência de políticas públicas específicas e da exclusão de pessoas LGBTQIAP+ das redes de apoio disponíveis (SANTOS, 2021). A aplicação da Lei Maria da Penha em relações LGBTQIAPN+ ainda é limitada e pouco explorada pela jurisprudência, embora decisões judiciais progressistas tenham ampliado sua interpretação para incluir mulheres trans e, em alguns casos, relações homoafetivas (STJ, 2022).

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 2025, estender expressamente a proteção da Lei Maria da Penha a casais homoafetivos do sexo masculino, bem como a travestis e transexuais, consolidando um entendimento mais inclusivo e abrangente (STF, 2025). No entanto, a ausência de um marco legal explícito que contemple a diversidade de arranjos familiares e relacionais no Brasil ainda impede que essa proteção seja efetiva e universal. Essa limitação jurídica, associada aos preconceitos estruturais presentes no sistema de justiça, contribui para a marginalização de pessoas LGBTQIAPN+ no acesso à proteção legal (BARSTED, 1994).

Assim, é urgente a necessidade de análises jurídicas e sociológicas sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha em contextos LGBTQIAPN+. Essas análises podem iluminar as lacunas existentes e propor soluções para ampliar a inclusão e a eficácia da lei, promovendo um enfrentamento mais equitativo e abrangente da violência doméstica.

A perspectiva interseccional, que reconhece a sobreposição de opressões baseadas em gênero, orientação sexual, raça e classe, é essencial para compreender plenamente a complexidade das experiências de violência vividas por pessoas LGBTQIAPN+ no Brasil (CRENSHAW, 1989). Em Recife, uma análise contextualizada dessas questões pode oferecer insights valiosos para o desenvolvimento de políticas públicas mais inclusivas e para a promoção de mudanças no sistema jurídico.

A análise da aplicação da Lei Maria da Penha em relações LGBTQIAPN+ transcende o campo jurídico ao abordar questões fundamentais de direitos humanos e equidade social. O objetivo é assegurar que todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, tenham acesso pleno à proteção contra a violência doméstica, em conformidade com os princípios de igualdade e dignidade humana previstos na Constituição Federal de 1988.

Essa abordagem exige uma revisão crítica das práticas judiciais e das políticas públicas, historicamente moldadas sob uma perspectiva heteronormativa, que frequentemente negligenciam as especificidades das populações LGBTQIAPN+. Segundo Torres Júnior (2019), a estrutura do sistema jurídico brasileiro, ao não considerar as dinâmicas particulares das relações homoafetivas, perpetua a exclusão dessa população, dificultando o acesso pleno aos direitos e à proteção previstos em lei. Essa revisão é fundamental para construir um sistema de justiça mais inclusivo e eficaz, capaz de atender às demandas específicas das vítimas LGBTQIAPN+ e garantir a equidade no enfrentamento da violência doméstica.

Recife, capital de Pernambuco, possui um histórico significativo de mobilização em torno de pautas de direitos humanos, incluindo movimentos feministas e de pessoas LGBTQIAPN+. A cidade apresenta um contexto político e social favorável à análise de como políticas públicas e ações judiciais podem ser inclusivas no enfrentamento da violência doméstica. Além disso, programas locais, como os desenvolvidos pela Secretaria da Mulher de Pernambuco, destacam-se na promoção de campanhas educativas e no fortalecimento da rede de proteção contra a violência de gênero. No entanto, a ausência de iniciativas que considerem explicitamente as necessidades de casais LGBTQIAPN+ expõe lacunas que perpetuam a invisibilidade dessas populações nas estratégias de enfrentamento à violência (CERQUEIRA et al., 2019).

Esse cenário reforça a importância de pesquisas que analisem o alinhamento entre as práticas jurídicas e os marcos internacionais de direitos humanos, como os estabelecidos pela Convenção Interamericana para a Prevenção, o Combate e a Erradicação da Violência contra a Mulher (CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ, 1994). A inclusão da população LGBTQIAPN+ nesse debate não é apenas uma questão de justiça, mas de reafirmação da necessidade de o sistema jurídico e as políticas públicas garantirem proteção equitativa para todas as pessoas, independentemente de sua conformidade com os padrões normativos de gênero e sexualidade (SANTOS, 2021).

Diante desse contexto, a presente dissertação estrutura-se em seis capítulos principais. Após esta introdução, a Seção 2 apresenta uma revisão de literatura sobre os principais marcos teóricos e jurídicos relacionados à violência doméstica, à Lei Maria da Penha e à população LGBTQIAPN+, com destaque para os debates sobre interseccionalidade, cidadania sexual e exclusão institucional.

A Seção 3 discorre sobre os aspectos metodológicos da pesquisa, detalhando os procedimentos utilizados para a análise documental e jurisprudencial, bem como a abordagem qualitativa adotada. A Seção 4 traz uma análise crítica da legislação vigente e da jurisprudência nacional, com foco em decisões do STJ e TJPE sobre a aplicação da Lei Maria da Penha a pessoas LGBTQIAPN+. Em seguida, a Seção 5 explora o contexto local do Recife, examinando a rede de políticas públicas existentes e sua capacidade de atender às especificidades da população LGBTQIAPN+ em situação de violência doméstica. Por fim, a Seção 6 apresenta as conclusões da pesquisa, sistematizando os principais achados e propondo recomendações de políticas públicas e ações institucionais voltadas à construção de um sistema de proteção mais inclusivo, equitativo e comprometido com os direitos humanos.

1.1            OBJETIVO GERAL

O objetivo geral desta pesquisa é avaliar a aplicabilidade e a eficácia da Lei Maria da Penha na proteção de pessoas LGBTQIAPN+ em Recife, com foco na violência doméstica em relações afetivo-sexuais. Embora a referida lei tenha sido concebida para enfrentar a violência de gênero contra mulheres cisgêneros, sua interpretação e aplicação em contextos que envolvem populações LGBTQIAPN+ ainda são temas de debate e enfrentam barreiras significativas. Este estudo busca explorar de forma aprofundada como essa legislação pode ser utilizada para proteger pessoas LGBTQIAPN+ que enfrentam situações de violência doméstica na cidade de Recife, examinando suas limitações e possibilidades.

1.2            OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Para alcançar esse objetivo geral, um dos objetivos específicos é examinar a abrangência da Lei Maria da Penha à luz de decisões judiciais que envolvam relações LGBTQIAPN+. Essa análise permitirá identificar como os tribunais têm interpretado e aplicado a lei em casos de violência doméstica envolvendo casais homoafetivos, pessoas transgênero e outras identidades de gênero. O foco estará em decisões judiciais que estabeleçam precedentes ou reflitam a resistência institucional em reconhecer a proteção legal para indivíduos LGBTQIAPN+, contribuindo para a discussão sobre a evolução jurisprudencial necessária para abarcar plenamente as especificidades desse grupo.

Outro objetivo específico é avaliar as políticas públicas e os serviços de proteção oferecidos a pessoas LGBTQIAPN+ no Recife. A cidade, embora possua um histórico relevante de mobilização em direitos humanos, ainda apresenta lacunas significativas no atendimento às demandas específicas da população LGBTQIAPN+ em situações de violência doméstica. Será analisada a existência de programas voltados para esse público, bem como a eficácia de iniciativas como redes de apoio, campanhas educativas e capacitação de profissionais da justiça e da segurança pública. O estudo busca compreender em que medida essas políticas e serviços reconhecem e atendem às particularidades das relações LGBTQIAPN+.

Por fim, o estudo se propõe a identificar os desafios e lacunas na aplicação da Lei Maria da Penha em relações LGBTQIAPN+, considerando aspectos culturais, jurídicos e sociais. Isso inclui a análise de preconceitos estruturais que dificultam o acesso à justiça, a falta de preparo técnico dos operadores do direito e as barreiras culturais que contribuem para a invisibilidade dessas populações nos sistemas de proteção. Além disso, serão exploradas questões como a resistência institucional em adaptar a legislação às realidades dessas populações e as consequências dessa exclusão para a sua vulnerabilidade. Com base nesses desafios, a pesquisa visa propor caminhos para um sistema jurídico e de políticas públicas mais inclusivos e eficazes.

1.3            JUSTIFICATIVA

Este estudo justifica-se por tentar preencher uma lacuna significativa na literatura jurídica e social ao examinar a aplicação da Lei Maria da Penha em populações LGBTQIAPN+. Embora a lei represente um marco no enfrentamento à violência doméstica, sua concepção e aplicação permanecem amplamente centradas em um paradigma heteronormativo, sem considerar as especificidades das relações LGBTQIAPN+. Dessa forma, a pesquisa oferece uma análise crítica que articula as perspectivas do direito, da interseccionalidade e das políticas públicas, reconhecendo como as sobreposições de opressões — baseadas em gênero, orientação sexual e identidade de gênero — moldam as experiências de violência e exclusão enfrentadas por essa população (CRENSHAW, 1989; SANTOS, 2021).

A contribuição deste estudo vai além da análise teórica, pois também apresenta recomendações práticas para o fortalecimento das redes de apoio e proteção na cidade. A cidade, com sua trajetória de mobilização social em torno de direitos humanos, oferece um terreno fértil para a discussão e implementação de políticas inclusivas. No entanto, a ausência de iniciativas específicas voltadas para a população LGBTQIAPN+ evidencia a necessidade de estratégias que promovam sua inclusão efetiva nos sistemas de proteção contra a violência doméstica. Este trabalho, portanto, busca não apenas identificar as barreiras institucionais e culturais existentes, mas também propor caminhos viáveis para superá-las, como a capacitação de profissionais, o desenvolvimento de políticas públicas sensíveis à diversidade e a ampliação do acesso à justiça.

Ao fazer isso, a pesquisa não apenas contribui para o avanço do conhecimento acadêmico, mas também para a criação de um arcabouço mais inclusivo e equitativo de proteção jurídica e social. Assim, ao propor uma reinterpretação da Lei Maria da Penha que contemple as realidades das populações LGBTQIAPN+, este estudo reafirma o compromisso com os princípios de igualdade e dignidade humana, que são fundamentais para a construção de uma sociedade democrática e inclusiva. Conforme Torres Júnior (2019), a revisão das normas jurídicas sob uma perspectiva inclusiva é indispensável para que as especificidades das relações homoafetivas e das experiências de violência enfrentadas pela população LGBTQIAPN+ sejam devidamente reconhecidas. Complementando essa análise, Cerqueira et al. (2019) destacam que a formulação de políticas públicas baseadas na interseccionalidade e na equidade pode contribuir para superar as barreiras estruturais que perpetuam a exclusão desses grupos, promovendo justiça e proteção efetiva.

 

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Publicado

2025-11-11

Como Citar

Nunes, R. V., & Lelis, H. R. (2025). A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM RELAÇÕES LGBTQIAPN+: LIMITES E POSSIBILIDADES NO CONTEXTO DO RECIFE. Revista Ibero-Americana De Humanidades, Ciências E Educação, 16–175. Recuperado de https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/21746

Edição

Seção

E-books

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